Análise psicológica do filme “Red: Crescer é uma Fera”
Você se lembra das crises que teve em sua adolescência? Essa análise psicológica do filme “Red: crescer é uma fera” vai falar exatamente sobre isso.
Os conflitos dessa fase da vida nada mais são que as crises do amadurecimento que todos nós passamos.
Essas crises acontecem através do conflito externo – com alguém ou alguma instituição; e também acontecem através do conflito interno -quando não suportamos alguma coisa dentro de nós que já não nos faz mais sentido.
“Red: crescer é uma fera” é um filme da Disney/Pixar que trabalha de forma divertida os aspectos muito profundos da mente humana – principalmente durante a transição da infância para a adolescência.
Ah… A base teórica principal dessa análise é a psicologia analítica de C. J. Jung, e as referências foram retiradas principalmente dos livros da Obra Completa desse e outros autores junguianos.
Pronto para mergulhar fundo nessa divertida história?
ÍNDICE DE CONTEÚDO
- Sinopse do filme “Red: crescer é uma fera”
- Panda e o processo de individuação de C. G. Jung
- A sombra interior que nos envergonha
- A integração da sombra
- O rompimento com o “complexo materno”
- A conquista da confiança após um mergulho no Si-mesmo
- O filme é um alerta para pais rígidos e moralistas
- A linda conclusão sobre os propósitos de cada ser
Sinopse do filme “Red: crescer é uma fera”
Meilin “Mei-Mei” Lee é uma menina sino-canadense alegre, enérgica e afetuosa que por volta de seus 13 anos, ao acordar se vê transformada em um panda vermelho gigante.
A referência kafkiana é notória, e, da mesma maneira que em “A metamorfose” escrito em 1915 por Franz Kafka, a protagonista passa a lidar com sua nova condição da melhor forma que pode.
Ao longo do filme, percebemos que a transformação física é apenas a manifestação externa de mutações importantes na psique da menina – que já não é menina, pois está, em meio a tudo isso, se tornando mulher.
A menarca e muitas outras mudanças
O panda é uma clara metáfora da menarca: a primeira menstruação da mulher. Por isso o tema “vermelho”.
Isso gera em Mei-Mei um sentimento de culpa e constrangimento quando tem que lidar com essa constatação no ambiente escolar.
Porém as camadas simbólicas do filme se sobrepõem, formando uma rica imagem de uma moça em meio aos conflitos familiares, psíquicos, sociais e físicos que acompanham essa fase da vida.
Antes Meilin vivia sob o que C.G. Jung – o pai da psicologia analítica junguiana – chama de complexos paterno e materno.
Ou seja, Meilin vivia na certeza das determinações de seus pais, buscando, como toda criança, a aprovação deles – principalmente sua mãe – através do comportamento moral aceito por eles.
Era como se a vida de Meilin fosse resultado de uma equação matemática que funcionava muito bem:
“Aprovação dos pais + Afeto das amigas + Desempenho escolar = Autoconfiança”
Bem… funcionava muito bem até que o “panda” se torna uma enorme variável desconhecida nessa matemática.
Isso gera um desequilíbrio assustador tanto para Meilin como para seus pais, principalmente sua mãe Ming.
Muita coisa deverá acontecer no filme para que Meilin Lee reconquiste seu equilíbrio interior saudável novamente.
Panda e o processo de individuação de C. G. Jung
Esse conto contemporâneo é uma metáfora perfeita para o processo de individuação teorizado por Carl Gustav Jung: a busca pelo Si-mesmo.
Como veremos nesta análise, essa busca interior pode obter muita inspiração nos nas histórias míticas e no sagrado (da mesma forma como ocorre com a protagonista do filme), sendo que a absorção desses conceitos é feita através de uma linguagem simbólica e metafórica.
Ao longo da análise psicológica do filme, irei discutir esses símbolos presentes na animação e citar possíveis abordagens terapêuticas que poderiam aliviar o sofrimento emocional das personagens (protagonista e sua mãe), aliviando as tensões psíquicas internas e as relações familiares.
A sombra interior que nos envergonha
O panda oculto de Meilin pode ser interpretado como a “sombra” da teoria junguiana: um complexo psíquico inconsciente de onde provém os aspectos mais selvagens da personalidade.
Meilin manifesta o panda contra sua vontade quando fica nervosa ou emocionada, e por isso, começa a tentar lidar com essa sombra num esforço enorme de autocontrole emocional – que algumas vezes funciona, em outras vezes não.
Você já passou por isso? Já tentou segurar a raiva alguma vez na vida para não explodir?
Pois bem: essa é a nossa sombra.
Devemos expressar a sombra ou negá-la?
Para Ming, mãe de Meilin que apresenta comportamentos de uma mãe tóxica, deveríamos todos suprimir e eliminar por completo esses aspectos “vergonhosos” da nossa interioridade.
Jung discordaria.
Para ele, os aspectos sombrios da alma devem ser trazidos à consciência para que possam ser transformados, e assim integrados de forma positiva na personalidade da pessoa.
E nesse sentido, não se trata de uma transformação do conteúdo “desprezível” da sombra em “outra coisa boa”, mas sim, em primeiro lugar, se trata de sua compreensão compassiva, e depois do direcionamento da sua energia de modo produtivo para aquele indivíduo.
Aplicando esse conceito em nossa própria vida
O que chamo de compreensão compassiva dos conteúdos da sombra nada mais é do que nos fazermos algumas perguntas com franqueza:
- O que é isso que vejo em mim?
- De onde vem essa energia psíquica?
- Por que esse aspecto quer ser visto e notado pela consciência?
- Qual sua função?
- O que essa sombra quer compensar em minha personalidade?
Tomando o exemplo do filme, Meilin poderia se perguntar:
- O que é o panda? De onde ele vem?
- Por que esse panda está se manifestando nos momentos de raiva e sensibilidade? Qual sua função?
- O que o panda está querendo compensar na minha personalidade?
As respostas a essas perguntas são melhor aproveitadas em uma boa terapia, e não vêm de uma vez só.
É um processo orgânico e longo de autoconhecimento e que sempre resulta num amadurecimento do indivíduo.
O que significa esse amadurecimento?
E por amadurecimento me refiro à autenticidade em relação à vida, e a superação de complexos e traumas do passado, dando lugar à experiência do contato do Ego (eu) com o Self (si-mesmo).
Além disso, a raiva potencialmente destruidora pode ser transformada no poder que irá possibilitar a cura de uma neurose, por exemplo.
Dessa forma, o panda será essencial para a transformação e amadurecimento de Meilin, como veremos adiante.
A integração da sombra
Para integrar sua sombra é necessário abandonar a negação e encarar de frente todos os aspectos sombrios da alma – como Meilin faz ao se ver como panda no espelho.
A partir desse autoconhecimento, se inicia o processo de aceitação e, posteriormente, a necessária aplicação desse conhecimento na sua história.
O pai de Mei-Mei faz um papel conciliador entre a sombra e o ego de sua filha, evidenciando as qualidades e aspectos positivos dela e, principalmente, aceitando essas características.
Essa aceitação, na idade de Meilin, é essencial para o desenvolvimento psíquico adolescente.
Aqueles de nós que não tiveram essa chancela de um dos pais terá, mais à frente, que encontrar autodeterminação para se auto aceitar, superando definitivamente os complexos paterno e materno.
Geralmente isso ocorre de modo cabal na chamada crise da meia idade, também chamada de “passagem do meio”, como James Hollis demonstra em seu fascinante livro “A passagem do Meio” (Hollis, 1995).
No caso de Meilin, o aval do pai a ajuda a ponderar mais sabiamente a decisão de eliminar o panda de sua história.
A animação é tão cheia de detalhes que até na fisionomia dos personagens vemos uma influência importante do pai em Mei-Mei: seus rostos são muito semelhantes, mais arredondados, diferente da família materna, com traços mais rígidos.
Agora, cabe a Meilin tomar uma decisão crítica pró ou contra o panda. Para Jung, ela deve ir em direção à integração desse panda em sua personalidade:
“Ao tornar-se consciente, a sombra é integrada ao eu, o que faz com que se opere uma aproximação à totalidade. A totalidade não é a perfeição, mas sim o ser completo. Pela assimilação da sombra, o homem como que assume seu corpo, o que traz para o foco da consciência toda a sua esfera animal dos instintos, bem como a psique primitiva ou arcaica, que assim não se deixam mais reprimir por meio de ficções e ilusões.” (Jung, 16/2 parágrafo 452).
Durante o ritual xamânico que serviria para prender o panda num cristal, Meilin Lee decide então aceitá-lo e assumi-lo como parte essencial do Si-mesmo, libertando seu lado selvagem – desafiando o complexo materno para o horror de sua família.
O rompimento com o “complexo materno”
O clímax do filme é a luta de Meilin com o panda de sua mãe.
Em nossa análise isso representa um conflito que ocorre dentro de cada um de nós em algum momento da vida: o Si-mesmo em conflito com o complexo materno.
Mas o que é complexo?
Complexo é uma energia psíquica inconsciente que determina ou influencia algum comportamento nosso.
É como se fosse um software ou aplicativo instalado em nossa mente.
Esses complexos são instalados em algum momento da vida e fazem com que pensemos ou nos comportemos de determinada forma.
E esses “softwares” podem funcionar a todo momento, ou ser ativados quando alguma coisa os desperta.
O conceito de complexo é explicado por James Hollis da seguinte forma:
“É impossível evitar os complexos porque temos uma história pessoal. O problema é que não somos nós que temos complexos e sim os complexos que nos possuem. Alguns complexos são úteis pois protegem o organismo humano, mas outros interferem com a escolha e podem até mesmo dominar a vida de uma pessoa. Os complexos são sempre mais ou menos inconscientes; são carregados de energia e operam autonomamente.” (Hollis, p. 17, 1995)
E quando fala dos complexos paterno e materno:
“De todos os complexos, os mais poderosos são as experiências interiorizadas dos pais que chamamos de complexo materno e complexo paterno.” (Hollis, p.18, 1995).
Noo caso de Meilin, ela vivia sob as rígidas determinações do complexo materno, e teve que questionar isso, lutando contra isso. Na animação, essa luta é externa, mas geralmente ela ocorre interiormente dentro de nós, quando não aceitamos mais que os complexos determinem nossa forma de agir ou pensar.
Meilin, agora de posse de sua decisão em favor do Si-mesmo, passa a enfrentar as consequências disso em sua vida social.
A própria mãe tinha seu panda reprimido
Vemos que a própria mãe de Mei possui uma gigantesca sombra reprimida dentro de si, machucada durante anos pelo seu próprio complexo materno (originário da avó de Meilin).
Ao ser provocada, a sombra de Ming se liberta, mas de forma patológica, neurótica e descontrolada, causando dor e sofrimento.
“Se a repressão não leva diretamente à estagnação, ela produz pelo menos um desenvolvimento unilateral, o que por sua vez resultará numa dissociação neurótica.” (Jung, 16/2, parágrafo 452).
A mãe, dona de um panda selvagem interior, não soube integrá-lo, e terminou por negá-lo ao longo de sua vida adulta. O que causou uma enorme cisão em sua psique, característica forte da neurose.
Neurose pode ser definida como um sofrimento percebido pela consciência, mas que esta não consegue explicar por desconhecer suas raízes inconscientes.
Duas coisas no filme demonstram um sofrimento psíquico importante não trabalhado de forma adequada no passado:
- A personalidade de Ming – neurótica com detalhes, rígida no trato com seu marido e sua filha, persecutória, de moralismo exagerado;
- A cena da posição fetal ao receber o telefonema da avó de Meilin.
No momento em que esse sofrimento latente é provocado, ele explode em um surto – libertando um panda gigante muito maior do que o panda da filha, causando constrangimento público e destruição.
Jung descreve o processo de surto da mãe de Meilin como se tivesse assistido a cena do filme na qual seu panda destroi o estádio SkyDome de Toronto:
“… a situação deixou cair o manto das convenções e evoluiu para um confronto direto com a realidade, sem os véus da mentira, nem enfeites de qualquer espécie. O homem mostra-se, portanto, tal como ele é, e releva o que antes estava oculto sob a máscara da adaptação convencional, isto é, a sombra.” (Jung, 16/2 parágrafo 452).
Para nossa surpresa, a avó da protagonista e todas as suas tias também possuem pandas interiores reprimidos e negados, o que indica um triste Trauma Transgeracional.
Nas palavras do psicólogo junguiano Antônio Maspoli:
“… o trauma transgeracional é entendido como um conjunto de acontecimentos traumáticos, cujos sintomas e suas manifestações ocorrem por meio da doença em si mesma.
O trauma histórico pode ser transmitido por meio das memórias coletivas, de modo consciente e/ou inconsciente, ou mesmo por uma amnésia coletiva: o não dito. (…) pode ser transmitido de geração a geração, assim como seus afetos e sintomas correspondentes.(…)
A transmissão intergeracional ocorre por meio da comunicação verbal e não verbal. A transmissão se dá no seio da família, pelo contato direto entre seus membros – pais e filhos, avós e netos irmãos e irmãs, tios e sobrinhos, etc.” (Maspoli, 2018)
Devido à incapacidade das personagens de lidarem com o conflito de modo consciente entre elas, a luta então passa a acontecer, tragicamente, a partir dos impulsos inconscientes.
O ilustra essa luta inconsciente através da luta entre o panda da mãe com o panda da filha.
Sabemos que, segundo Jung, tudo o que está acessível à consciência é capaz de ser transformado. Mas quando os conflitos são inconscientes, não temos como trabalhar com eles para “curá-los”.
O indivíduo não conseguirá lidar com aspectos negativos da própria alma, pois, como o próprio conceito diz, eles não estão acessíveis, pois o inconsciente é isso mesmo: não conhecido.
Porém Meilin opta por se aventurar a conhecer o seu panda, e essa força de caráter e autodeterminação a capacita no processo de integração e cura da cisão neurótica anterior.
Para isso ela terá que desafiar uma ordem direta de sua mãe – e isso gerará por sua vez o conflito e a superação do complexo materno.
A conquista da confiança após um mergulho no Si-mesmo
Jung comenta que uma pessoa só se torna herói após o enfrentamento de seu próprio dragão interior.
“… da mesma forma descobre e ganha o tesouro, ‘aquela preciosidade difícil de conseguir’, somente aquele que ousa a confrontação com o dragão e não perece. Tal pessoa tem verdadeiro direito à autoconfiança, pois enfrentou a profundeza escura do próprio si-mesmo e desse modo conquistou para si o seu si-mesmo.
Essa experiência interna lhe dá força e confiança (…) na capacidade de sustentação do si-mesmo, pois tudo o que o ameaçava provindo do interior, ele o tornou coisa própria sua, adquirindo desse modo certo direito de crer que será capaz de dominar com os mesmos meios tudo o que no futuro ainda possa ameaçá-lo.
Desse modo ele adquiriu certa segurança interior que o capacita a ser autônomo, como também atingiu o que os alquimistas designam como unio mentalis (união mental). “ (Jung, 14/2, parágrafo 410).
Podemos resumir a análise psicológica desse filme como: uma história sobre a busca da autoconfiança e da conquista da autonomia.
Meilin, ao se deparar com a mudança (fruto de uma nova condição psíquica tingida de vermelho), perde a autoconfiança infantil, e deve portanto trilhar sua própria versão da “jornada do herói”.
O dragão interno aparece em forma de um panda assustador, que é “vencido”, mas não no sentido de ser eliminado, mas sim integrado conscientemente como parte do Si-mesmo inconsciente.
Agora o dragão – assim como a figura do filme Shrek (Shrek, 2001), já não é mais o monstro incontrolável do começo, mas um necessário e amigável parceiro, do qual o Si-mesmo tira toda força necessária para o enfrentamento de outras ameaças externas.
Esse caminho é a matéria-prima para a mais autêntica autoconfiança.
E isso Meilin conquista, apesar de seus pequenos vacilos morais compreensíveis para quem ainda não encontrou sua verdade interior pautada num caráter experimentado.
O filme é um alerta para pais rígidos e moralistas
Como não poderia deixar de ser, o filme termina com um final feliz.
Lembremos que ele está sob a marca Disney – o final tinha necessariamente que ser feliz.
Porém aqueles que superaram essa fase da vida com relativo sucesso sabem que nem sempre a harmonia com os ambientes familiares e sociais da infância será bem sucedida.
Em muitos (talvez a maioria) dos casos, será necessário um rompimento parcial ou total para garantir a autenticidade do “novo” ser.
Isso ocorre porque para que essa harmonia ocorra, todos os envolvidos precisam ter a mesma coragem e força de caráter de mergulhar em seus inconscientes em busca de integração, possibilitando o pacificação dos dilemas morais envolvidos.
Todos precisam enfrentar seus dragões e vencê-los.
Sabemos que, infelizmente, nem todos estão dispostos a isso.
Em muitos casos, os ambientes sociais geradores de neurose irão impor e exigir o sacrifício do panda interior por parte do indivíduo, matando parte de sua personalidade e assim desumanizando-o.
Isso não seria aceitável, pois partimos do pressuposto que o processo de individuação e amadurecimento do ser passa necessariamente por sua humanização cada vez mais profunda.
O que muitos ambientes familiares e sociais exigem é o sacrifício do si-mesmo no altar da moralidade vigente.
Nesses casos, a manutenção de uma persona (a função social que aquela pessoa exerce), de características infantis, se torna insuportável.
Essa persona passa a ser a gravata apertada e o sapato que machuca os pés, mas que não podem ser retirados pois somente eles são aceitos nas festas morais dos ambientes sociais.
As ameaças diretas ou veladas que se fazem para que aprisionemos ou sacrifiquemos nossos pandas são das mais diversas, mas sempre envolvem culpa, medo, ameaça de expulsão ou até a ganância com a oferta de determinado status social – “você será aceito entre nós”.
Para as almas cada vez mais solitárias e neuróticas do nosso século XXI essa pressão é avassaladora.
Naturalmente, então, o enfrentamento não só do dragão interno mas também dessas pressões sociais é necessário!
O adolescente vai errar: isso é natural e faz parte do processo de crescimento
Meilin Lee fez esse enfrentamento de modo descuidado ao desobedecer a mãe e ir, sem sua autorização, ao show.
Podemos, naturalmente, encontrar formas menos desafiadoras e perigosas de fazer isso, mas não podemos, de modo moralista, desconsiderar o processo natural de desenvolvimento do caráter de uma adolescente de 13 anos.
Talvez, parte da adolescência seja a vivência exatamente desse processo: experimentar e testar os limites morais da sociedade ao buscar uma autenticidade viva e pulsante de sua própria personalidade. Como todo teste, haverão erros mais ou menos graves necessários para a formação do caráter do ser.
Em outras palavras, esse chamado “desvio moral” da protagonista em desobedecer uma ordem da mãe – que tantas mães reais reclamaram de ver presente num desenho infantil de classificação livre – é um problema absurdamente menor e totalmente contornável!
Com amor e compreensão, pais e mães poderão ajudar seus filhos a superarem esse momento difícil da vida.
Esses problemas são muito pequenos se comparado com os riscos gravíssimos de perceberem que seus filhos amputaram e mataram uma parte absolutamente essencial de si-mesmos e de suas personalidades!
O resultado dos assassinatos de pandas em nossa sociedade é o aumento assustador dos transtornos depressivos.
Na visão junguiana, depressão nada mais é do que o represamento da energia psíquica legítima do ser (seus pandas), que, ao invés de ser liberada para fora, cumprindo sua função para os propósitos últimos do ser, é direcionada para o fundo da psique (depressão no sentido geológico).
Isso gera desequilíbrio, sofrimento e, a depender da gravidade da cisão interior, morte de parte ou do todo do ser – como nos tristes episódios de suicídios.
Sim, a prisão ou assassinato dos nossos “pandas” é muito mais grave do que as escorregadelas morais que todo adolescente experimentará.
Portanto, o filme não é apenas uma fonte de inspiração para os que estão em transição, ou para quem se ve raptado sem querer por uma raiva inconsciente que surge “do nada” – e isso pode acontecer não apenas na adolescência, mas ao longo de toda a vida.
O filme também é um apelo àqueles que no passado optaram trancar partes de si-mesmos (seus pandas) num calabouço, e que agora ouvem com horror seus rugidos e o tilintar de suas correntes chacoalhando com violência lá no fundo da alma.
Se você sente isso, há um perigo real de seus pandas escaparem descontrolados gerando toda sorte de sofrimento. Sofrimento tanto para si-mesmos como para os que os rodeiam.
Nas palavras de Jung:
“A questão hoje não é mais: como posso livrar-me de minha sombra? Pois vimos de perto a maldição que pesa sobre o ser só metade.
O que temos que nos perguntar agora é: como pode o homem conviver com sua sombra, sem que isso provoque uma série de desgraças?
O reconhecimento da sobra é motivo de humildade e até de temor diante da insondável natureza humana. E é até bom assumirmos essa atitude prudente, pois o homem sem sombra julga-se inofensivo, e isto justamente por ignorar a sua sombra. Mas quem conhece sua sombra sabe que não é inofensivo…” (Jung, 16/2 parágrafo 452).
O que essas mães e pais chocados com o roteiro do filme deveriam se perguntar é:
- Meu horror ao relato sincero dos paradoxos da adolescência diz o que a respeito do meu próprio panda interior?
- Meus complexos (pandas) interiores foram devidamente atendidos e integrados no passado? Ou ainda vivo (como a mãe de Meilin) com a sombra da reprovação materna ainda sob minha cabeça?
O que as culturas antigas e a sabedoria nos dizem há milênios é que apenas quem passou pelo processo de individuação, integrando sua sombra e ressignificando sua relação com o si-mesmo, poderá guiar as gerações que virão com compaixão e sabedoria.
E para aqueles que não possuem o privilégio de serem guiados por outros nesse processo, tenho aqui uma boa notícia…
A linda conclusão sobre os propósitos de cada ser
A boa notícia é que esses nossos pandas interiores podem ser – mais do que apenas domados – fonte de muita energia interior para o cumprimento dos propósitos de vida de cada pessoa.
Explicando em outras palavras – vamos precisar dos nossos pandas para experimentarmos o que viemos ser e fazer aqui nessa terra!
Não faltarão para cada um de nós, histórias, símbolos e mitos que nos inspirem nessa jornada. Essa deliciosa animação é um desses mitos contemporâneos.
Finalizo com uma sugestão a todos os peregrinos da alma: ao invés de fingirmos que o panda não existe, ou querermos (em vão) matá-lo, que tal olharmos para ele no espelho da alma e dizermos com coragem: vamos conversar?
Certamente essa será uma das mais incríveis conversas que teremos em toda nossa vida.
Se cuide!
RED: CRESCER É UMA FERA, Direção: Domee Shi. Produção: Lindsey Collins. Estados Unidos: Walt Disney Studios Motion Pictures, 2022.
JUNG, C. G.. O Livro Vermelho; Petrópolis, Editora Vozes, 2010.
JUNG, C. G.. Obra Completa de C. G. Jung.
- Volume 6 Tipos psicológicos; Petrópolis, Editora Vozes, 2013.
- Volume 7/1 Psicologia do inconsciente; Petrópolis, Editora Vozes, 2014.
- Volume 11/2 Interpretação psicológica do Dogma da Trindade; Petrópolis, Editora Vozes, 2013.
- Volume 12 Psicologia e alquimia; Petrópolis, Editora Vozes, 2012.
- Volume 14/2 Mysterium Coniunctionis; Petrópolis, Editora Vozes, 2012.
- Volume 16/1 A prática da psicoterapia; Petrópolis, Editora Vozes, 2013.
- Volume 16/2 Ab-reação, análise dos sonhos e transferência; Petrópolis, Editora Vozes, 2012.
- Volume 16/2 Ab-reação, análise dos sonhos e transferência; Petrópolis, Editora Vozes, 2012.
KAFKA, Franz. A Metamorfose; Tradução Christina Maria Wolfensberger, Editora Via Leitura, 2017.
HOLLIS, James. A passagem do meio: da miséria ao significado da meia-idade. Coleção Amor e Psique; Editora Paulus, 1995.
MASPOLI, Antonio. Trauma Transgeracional e Resiliência na Diáspora Africana; Editora Reflexão, 2018.
SHREK, Direção: Andrew Adamson, Vicky Jenson. Produção: Aron Warner, John H. Williams, Jeffrey Katzenberg. Estados Unidos: DreamWorks Animation, 2001.
muito show D+. obg por compartilhar seus conhecimentos de forma tão didática, bem acessível linguagem.
Valeu Glauber! Fico feliz em saber.