Freud Além da Alma: análise cena a cena do filme
Com roteiro que lembra os suspenses de Hitchcock e recheado de conceitos da teoria psicanalítica, o filme Fred Além da Alma de 1962 é um prato cheio para os amantes do cinema e da psicologia.
Nesse artigo eu faço uma análise do filme cena a cena, citando quais conceitos teóricos foram aplicados ao roteiro do filme.
Então pegue sua pipoca, sente no divã, e venha curtir essa obra prima da 7ª arte!
ÍNDICE DE CONTEÚDO
Sobre o filme Freud Além da Alma
O filme retrata a investigação de Freud ao longo dos anos em busca dos conceitos que futuramente seriam consolidados na teoria da psicanálise.
Levando em conta os recursos cinematográficos da época – sem comparação com os efeitos visuais e a tecnologia usada nos filmes contemporâneos – considerei o filme excelente!
Se você souber assistir o filme com um olhar mais purista, verá que esse filme possui:
- Ótimos atores,
- Trilha sonora instigante,
- Cenas ricas de significado (principalmente se você conhece psicanálise),
- Enquadramentos perfeitos, dando uma grande dramaticidade às cenas e,
- Um roteiro que visa romancear a história de maneira a transformá-la em um suspense a la Hitchcock.
Ou seja: um filme obrigatório para os amantes da psicologia!
Análise do filme cena a cena
Praticamente todas as cenas do filme possuem um conceito psicanalítico envolvido, por isso eu vou apresentar alguns deles aqui pra você.
Escrevi um outro artigo completo sobre psicanálise que você pode ler aqui!
Para cada cena selecionada eu apresento o conceito psicanalítico utilizado no filme, e em que momento ela aparece no filme.
Vamos lá?
CENA 1: No hospital com professor Meynert no início do filme.
Conceito psicanalítico: Histeria
O filme começa em Vienna quando o jovem Freud acompanha o tratamento de uma mulher que sofria de “histeria”.
O professor Meynert, um médico apegado aos conceitos ortodoxos da medicina, tenta provar que a histeria se trata de mero fingimento da paciente para chamar a atenção e conseguir fugir de suas responsabilidades.
Indiferentes aos sofrimentos das mulheres histéricas e com uma postura negacionista, os médicos ortodoxos da época não demonstravam empatia em relação a seus pacientes, ignorando completamente o que ocorria na escuridão das suas mentes adoecidas.
No filme então, Freud discorda dessa resposta fácil e suspeita que se trata de um problema real e profundo. Porém ainda não possui argumentos para apresentar por ainda desconhecer as leis de funcionamento do aparelho psíquico.
Essa introdução dá o tom do filme todo: a busca de Freud por respostas a questões não resolvidas pela medicina tradicional.
CENA 2: Breuer viajando em uma carroça com Freud aos 27 minutos do filme.
Conceito psicanalítico: Modelo econômico do aparelho psíquico
Breuer apresenta o que futuramente Freud denominaria de modelo econômico, apresentando as energias psíquicas como destinadas a serem equilibradas ou dispersadas.
Quando isso não ocorre, haveria um represamento dessa energia, causando o sintoma.
Esse modo de funcionamento da mente visa a economia de energia libidinal, de forma a encontrar o caminho que for menos penoso de se expressar pelo aparelho psíquico.
CENA 3: Conversa de Freud com o professor Meynert no hospital sobre os escorpiões aos 30 minutos de filme.
Conceito psicanalítico: Inconsciente e mecanismo de defesa do ego
Para Meynert, seus escorpiões presos na escuridão da caixa simbolizam “os maus espíritos” que deveriam ser deixados na escuridão para que não tomem conta do mundo.
Para ele, lançar luz sobre as questões que Freud buscava elucidar seria um erro, devendo “deixar para a noite o que a ela pertence”.
Nos pareceu que os roteiristas tentaram representar a escuridão do inconsciente através da metáfora da cena, onde adormecem os desejos ocultos, os traumas e as experiências passadas, e que eventualmente emergem da escuridão para assombrar os indivíduos à plena luz do dia através dos sintomas das neuroses.
Dá-se então o contraste de abordagens entre a de Freud e a de Meynert em relação ao problema.
O primeiro, numa atitude investigativa, buscava respostas reais ao problema da histeria, rompendo os dogmas científicos vigentes.
O segundo, numa atitude preguiçosa e negacionista, se recusava a ir além do que já se sabia, dando respostas fáceis e descompromissadas ao problema da histeria.
É interessante notar que mesmo usando um discurso aparentemente científico, Meynert negava o próprio espírito da ciência, a saber, a dúvida que motiva uma atitude não preconceituosa e investigativa da realidade.
Posteriormente, vemos no filme que ele estava vivenciando um mecanismo de defesa do ego: a negação, pois ele mesmo possuía os sintomas de histeria.
CENA 4: Na rua, analisando seus pacientes aos 36 minutos de filme.
Conceito psicanalítico: Mecanismo de defesa do ego
A partir das primeiras experiências clínicas com seus pacientes, Freud começa suas suspeitas de que haveria “um mecanismo psíquico que defende a mente de lembranças intoleráveis”.
Futuramente ele chamaria formalmente esse processo de mecanismo de defesa do ego.
CENA 5: Com sr. Von Schlosser 37 minutos de filme.
Conceito psicanalítico: Complexo de Édipo e contratransferência
Essa cena buscou introduzir o complexo de Édipo no filme, conceito que posteriormente aparece em diversas outras cenas.
A queixa inicial é que Schlosser tinha atacado seu pai em um aparente surto, sendo acusado de loucura. Freud o atende utilizando a hipnose, desvendando o ciúmes do paciente por sua mãe, e o complexo edípico mal resolvido e recalcado.
O sonho posterior de Freud envolvendo Schlosser indica que uma contratransferência aconteceu devido ao complexo de Édipo mal resolvido do próprio Freud.
CENA 6: Abertura e fechamento da porta da casa de Von Schlosser aos 37 e 42 minutos de filme.
Conceito psicanalítico: Barreira da censura
Como falado na nossa introdução, o filme possui inúmeras metáforas envolvendo conceitos da psicanálise. Como, por exemplo, na cena da porta do recinto onde está o sr. Von Schlosser.
Sabemos pelo filme que o próprio Freud tinha um complexo edípico mal resolvido.
Freud, ao se ver exposto aos desejos de Schlosser por sua mãe, tranca afoitamente a porta da casa numa representação das nossas dificuldades em lidar com os impulsos ocultos no inconsciente, tão aversivos para a consciência.
A porta, então, simboliza a chamada barreira da censura.
CENA 7: Despedida de Breuer a Cecily a 1 hora e 10 minutos de filme.
Conceito psicanalítico: Chiste
Ao saber que Breuer iria para Veneza, Cecily comenta que lá é maravilhoso e que será para ele “uma segunda lua-de-mel”, e depois faz um chiste dizendo “quem sabe, doutor, para quem pode servir”, revelando seu desejo erótico oculto por Breuer.
(Cecily é o personagem fictício de Bertha Pappenheim, a paciente real de Breuer.)
CENA 8: Sonho de Freud a 1 hora e 18 minutos de filme.
Conceito psicanalítico: Interpretação dos sonhos
Após um sonho relevador, Freud fala “Podem os sonhos ser ideias escapando da repressão?”.
Essa seria então a gênese de um dos conceitos mais famosos da psicanálise: a interpretação dos sonhos.
Nele Freud postula que os sonhos são formações do inconsciente, podendo ser interpretados para que se possa investigar as possíveis origens das neuroses.
Desaprovados pelo superego, os desejos seriam então recalcados no inconsciente de forma que o indivíduo possa conviver de forma segura e aceitável na sociedade.
Esses desejos do inconsciente encontraríam no sonho uma forma de serem expressados, porém de forma dissimulada através de símbolos que ocultaríam seu real significado.
Na clínica, analista e analisando teriam então que iniciar uma investigação interpretativa desses sonhos de forma a dar significado a essa expressão.
CENA 9: Ato falho de Cecily a 1 hora e 26 minutos de filme.
Conceito psicanalítico: Ato falho
Na análise que Freud fazia com Cecily, esta diz “Foi a época mais feliz da minha vida.” enquanto narrava o acidente grave de sua mãe, e logo depois se corrige dizendo que não foi isso que quis dizer.
Logo depois ela diz “Ela dizia que fui criada como uma prostituta.”, se corrigindo depois para “protestante”, se corrigindo novamente.
Ambos os atos falhos indicam uma disputa da filha com a mãe pelo amor do pai, num Complexo de Édipo não resolvido.
As inúmeras alusões à psicanálise
De fato, o filme é feito de inúmeras alusões à teoria psicanalítica. Outros exemplos são:
- o sintoma de Freud no cemitério devido ao recalque edípico;
- a transferência de Cecily, projetando a figura paterna em Breuer e depois em Freud;
- a associação livre que Freud descobre ser mais eficaz do que a hipnose;
- a catarse de Cecily ao declarar que odiava o pai por achar que foi preterida por causa das prostitutas;
- o trauma pelo abuso realizado por seu pai, mesmo que fantasiado;
- o determinismo psíquico postulado por Freud ao entender que sua memória em relação a sua irmã falhara por um determinado motivo;
- a culpa de Cecily gerada por um consciente ou superego que a acusava de acusar seu pai de um crime;
- sua negação ao ser confrontada por Freud;
- a descoberta do Complexo de Édipo por Freud ao concluir que Cecily não teve um trauma reprimido, mas sim o fantasiou;
- o princípio do prazer e as fases do desenvolvimento psicossexual anunciada em sua palestra ao final do filme.
A conclusão a que chegamos é que Sigmund Freud entrou para a história da humanidade como um gênio que ousou interpretar a mente humana como nenhum outro pode fazê-lo antes.
Assim ele contribuiu para experimentarmos de forma mais profunda a máxima délfica: “conhece a ti mesmo”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- FREUD além da alma. Direção de John Huston. Produção de Wolfgang Reinhardt. EUA: 1962. DVD (139 min).
- ZIMERMAN, D. E. Fundamentos Psicanalíticos: Teoria, técnica e clínica. Porto Alegre: Artmed, 1999.